Futebol-arte
Depois de anos sendo definido de forma pejorativa como “romântico” (isto é, distante da realidade), ultrapassado em tempos pragmáticos, eis que o futebol-arte volta a ganhar as manchetes das editorias de esporte. Vem turbinado por dois fenômenos atuais – o Barcelona e o Santos. Guardadas proporções e diferenças, ambos praticam o jogo de maneira criativa e esteticamente agradável. Vê-los é uma festa para os olhos e não apenas pela criatividade de um Messi ou de um Neymar, mas pelo brilho do jogo coletivo que praticam. E assim como o Barcelona tem seguidores no mundo todo e não apenas na Catalunha, o Santos desperta admiração não somente em sua própria torcida, mas entre os adversários e aficionados sinceros do esporte – quer dizer, entre todos aqueles que gostam do futebol bem jogado e apreciam a sua beleza, para além das paixões nacionais ou clubísticas. O futebol-arte é a pátria dos que amam esse esporte.
Outros times, ao longo do tempo, mereceram esse tipo de admiração. O Real Madrid de Di Stéfano jogava por música, assim como o Santos de Pelé. Algumas seleções marcaram época por seu jogo bonito, como a Hungria de 1954, a Holanda de 1974 e o Brasil de 1958 e 1970. Sobre esta última, o historiador Eric Hobsbawm disse que, quem a tinha visto jogar, não poderia mais negar ao futebol a qualidade de uma grande arte. Eram times que encantavam e provocavam suspiros nos espectadores. A estreia de Pelé e Garrincha contra a União Soviética em 1958 produziu páginas de admiração de vários cronistas. Poderíamos invocar Nelson Rodrigues, mas este era brasileiro, nacionalista e hiperbólico. No entanto, um escritor neutro, testemunha do jogo, registrou que, naquele início de partida, o Brasil havia produzido os cinco minutos mais frenéticos da história do futebol mundial. Foi quando o time, comandado no meio de campo por Didi, e tendo os estreantes Garrincha e Pelé no ataque, liquidou com os russos e seu “futebol científico” com uma sucessão de investidas fulminantes. Foram duas bolas na trave em questão de minutos de jogo, produtos de dribles e passes mágicos, em velocidade e fluência estonteantes. O Brasil ganhou o jogo por 2 a 0. Fora o baile, segundo cronistas.
O futebol-arte pode existir em vários países, mas talvez o Brasil seja, ou melhor, foi um dia, seu praticante mais assíduo. Aqui floresceu o beautiful game, fruto de um trabalho cultural que adoçou e arredondou o rígido jogo britânico com a ginga, a finta, o passe em curva, o jeito sutil de bater na bola. Gilberto Freyre descreveu esse processo de aculturação no prefácio de O Negro no Futebol Brasileiro, livro clássico de Mário Filho. Nele, evoca a contribuição da capoeira e do samba no abrasileiramento do jogo da bola pela miscigenação afro-brasileira. Mesmo que se relativize essa tese, subsiste, até hoje, a ideia bem razoável de que o caldeirão étnico sul-americano mostra-se mais propício à produção de craques esfuziantes como Maradona, Pelé, Garrincha e Messi, ficando os europeus com a racionalidade do jogo, sua organização mercadológica, disciplina tática e marcação defensiva rígida, que são de fato os seus pontos fortes.
Como toda dicotomia, esta também tem seus limites. Todo futebol-arte, ofensivo por definição, também precisa marcar, ao menos para recuperar a bola e poder tratá-la bem, assim como o futebol-força precisa manter uma dose mínima de invenção, ao menos para surpreender o adversário de vez em quando e ganhar os jogos. Mas é claro que, se esse tipo de maniqueísmo futebolístico precisa ser evitado, também não se pode negar que existam diferenças – e bem evidentes – entre as escolas e estilos do futebol.
Em 1970, o ensaísta, poeta e cineasta (e também jogador nas horas vagas) Pier Paolo Pasolini, impressionado com a seleção brasileira que ganhou o tricampeonato no México, cunhou a distinção entre o “futebol de prosa”, europeu, e o “futebol de poesia”, brasileiro. Futebol de poesia: a expressão parece particularmente feliz para descrever jogadas como as que foram vistas naquela Copa: um genial drible de corpo no goleiro, uma tentativa de gol de longa distância, passes milimétricos e em curva, mudanças surpreendentes de posição no campo de jogo, etc. Pura “poesia”. Deslocamento do sentido original que, como no poema escrito, produz impressão de surpresa e arrebatamento. Epifania, aquele tipo de iluminação estética que pode ser provocada por um verso de Rimbaud ou por uma finta de Pelé. Já o futebol de prosa funciona pelo rigor matemático dos passes retilíneos e as triangulações com que seus praticantes se aproximam do gol adversário. Pode ser belo, também.
O futebol-arte venceu em inúmeras ocasiões e perdeu em outras. Para ficar apenas na seleção brasileira, ganhou nas Copas de 1958, 1962 e 1970. Perdeu na de 1982, com aquela maravilhosa equipe de Sócrates, Falcão, Zico & Cia derrotada pela Itália de Zoff, Paolo Rossi e Gentile. Não era mau time, esse da Itália, e acabou campeão do mundo. Jogava seu futebol de prosa com extrema eficiência. O problema é que essa derrota brasileira funcionou como argumento definitivo para os defensores do futebol de resultado. Como se, em uma única partida, o futebol-arte tivesse ruído e sido condenado à obsolescência para todo o sempre. A partida, jogada no Estádio de Sarriá, em Barcelona, foi um divisor de águas, senha para uma nova mentalidade que ganhou corpo com a vitória do futebol pragmático da seleção brasileira em 1994, da qual fazia parte o técnico Dunga.
E não é que, quando se supunha morto e enterrado, o futebol-arte revive? E, além de reviver, passa a ganhar títulos? É o caso da seleção da Espanha que, com seu jogo vistoso e ofensivo, torna-se campeã da Eurocopa em 2008. Caso do Barcelona, atual campeão europeu de clubes. E do Santos, com seus moleques geniais, que se aproximam do primeiro título de suas vidas profissionais. Sem nunca ter morrido de fato, o futebol-arte reaparece e, para surpresa de muitos, mostra-se eficiente e vencedor. Sugerindo que talvez não haja contradição entre um certo romantismo e a obtenção de resultados. Como se para fazer boa prosa fosse também preciso ter alguma queda pela poesia.
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